Hoje começamos com o underground da literatura brasileira.

Surrealismo na Literatura – Hoje começamos com o underground da literatura brasileira.


Como nosso tema do momento é Surrealismo, trataremos da obra “Paranoia” (1963), de Roberto Piva, obra singular que marcou a poesia underground (já que ele não se incluía na classificação Marginal brasileira (que é mais para os eleitos), com sua visão caótica e alucinatória da cidade de São Paulo.

PARANÓIA EM ASTRAKAN

Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci
onde anjos surdos percorrem as madrugas e tingindo seus olhos com
lágrimas invulneráveis
onde crianças católicas oferecem limões aos pequenos paquidermes
que saem escondidos das tocas
onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados
estéreis e incendeiam internatos
onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam
a descarga sobre o mundo
onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha
no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua
última janela
onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte
branco
onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe
escurecendo a página
onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorroidas
das beatas
onde as cartas reclamam drinks de emergência para lindos tornozelos
arranhados
onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas
penas
onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da
imaginação

Roberto Piva: Uma Viagem Poética pelo Surrealismo e a Alucinação Urbana de São Paulo
No cenário da poesia brasileira, especialmente nas décadas de 1960 e 1970, poucos autores ousaram transitar por terrenos tão férteis e desafiadores como Roberto Piva. Com a publicação de Paranoia, Piva desafiou normas literárias e culturais ao criar uma obra que explora, de forma crua e visceral, as tensões, alucinações e contradições de uma São Paulo caótica. O livro se insere como uma referência singular na poesia underground brasileira, resistindo à categorização como literatura marginal e, ao mesmo tempo, rejeitando as classificações convencionais da época. Piva usa elementos de surrealismo e da poesia beat para construir uma narrativa poética que não apenas retrata uma cidade em colapso moral e espiritual, mas também promove uma crítica profunda à sociedade burguesa e suas normas, incorporando temas que ainda hoje ressoam como inquietações artísticas e existenciais.


Paranoia: Um Olhar Surrealista e Caótico sobre São Paulo
Paranoia é, em essência, uma obra que combina poesia com fotografia, apresentando versos potentes ao lado de imagens provocativas capturadas por Wesley Duke Lee. Esta união entre texto e imagem não é meramente ilustrativa, mas complementa e intensifica a experiência de leitura, oferecendo ao público uma São Paulo distorcida, fantasmagórica e viva. As fotografias colaboram para a criação de uma cidade que não é simplesmente cenário, mas um personagem intrínseco à poesia de Piva: uma São Paulo que, embora moderna e em expansão, parece consumir e ser consumida pelo próprio progresso, resultando em uma metrópole ao mesmo tempo sedutora e decadente.


A São Paulo de Piva não é a cidade das vistas panorâmicas e das paisagens que comumente estampam cartões-postais. Em vez disso, ele a retrata como um espaço fragmentado e alucinatório, um lugar onde se cruzam diferentes realidades e onde o sagrado e o profano, o erótico e o espiritual convivem em uma tensão constante. O olhar surrealista do poeta permite que ele extraia do cenário urbano suas contradições mais profundas, explorando becos, praças, corpos, sombras e vultos que caminham em uma espécie de dança caótica.


Influências Surrealistas e o Movimento Beat: Rumo ao Caos Poético
Ao longo da obra, percebe-se claramente a influência do surrealismo europeu, um movimento artístico que encontrou em André Breton seu principal teórico e que visava explorar o inconsciente, os sonhos e os desejos reprimidos. No caso de Piva, o surrealismo é uma ferramenta que ele usa para desmontar a racionalidade urbana, abrindo caminho para um novo tipo de consciência poética, que transcende o lógico e o previsível.
A proximidade de Piva com o movimento beat também é evidente e se manifesta em sua rebeldia estética e em sua recusa em seguir padrões literários. Influenciado por autores como Allen Ginsberg e Jack Kerouac, ele busca uma poesia que seja mais do que palavras – uma expressão de liberdade que desafia convenções sociais e morais. Como Ginsberg fez com os EUA em Uivo, Piva faz com o Brasil e com São Paulo em Paranoia, transformando sua poesia em uma espécie de grito coletivo que questiona as amarras da vida urbana e os valores da sociedade burguesa.


Essa confluência de influências torna Paranoia uma obra rica em camadas interpretativas e simbolismos. Ao mesmo tempo em que Piva bebe da fonte do surrealismo e do movimento beat, ele também constrói algo completamente novo e inusitado, uma “paranoia” artística que se apropria dos elementos visuais e textuais para propor um olhar crítico e ao mesmo tempo poético sobre a modernidade.


Homoerotismo e Espiritualidade: Temas Provocativos e Rompedores
Um dos aspectos mais marcantes de Paranoia é a exploração de temas como o homoerotismo e a espiritualidade, elementos que, na época, eram vistos como tabus. Piva aborda o desejo homoerótico com uma linguagem que não busca atenuar ou esconder, mas que o coloca em evidência, questionando as normas de uma sociedade repressora e hipócrita. O homoerotismo, em sua poesia, não é apenas uma expressão de desejo, mas também uma provocação e uma crítica à moralidade burguesa, que se esforça para manter certas realidades fora de sua vista.
A espiritualidade, por outro lado, é abordada de forma não convencional, distante dos preceitos religiosos mais formais. Piva parece buscar uma conexão espiritual que não depende de dogmas ou regras institucionais, mas que emerge de uma relação íntima com o caos e com a própria cidade. Em Paranoia, o sagrado e o profano se entrelaçam, revelando uma espiritualidade própria, que faz uso das ruas, das praças, dos sons e das sombras como elementos de uma religiosidade não convencional, uma espécie de transcendência que só pode ser alcançada na experiência urbana.


A Crítica Social de Paranoia: Desmascarando a Hipocrisia Burguesa
Paranoia não é apenas um livro de poesia, mas um manifesto contra o conformismo e a hipocrisia de uma sociedade que, em sua visão, está moralmente falida. Piva usa sua obra para atacar as estruturas burguesas, as instituições religiosas e as normas sociais que sufocam a individualidade e a liberdade. Um dos poemas mais icônicos da obra, “A Piedade”, é um exemplo contundente dessa crítica, onde ele aborda as contradições da caridade e da moralidade cívica, usando imagens intensas para confrontar o leitor com a hipocrisia e a falsidade dos valores pregados pela sociedade.
Através de “A Piedade” e de outros poemas, Piva busca desestabilizar o status quo, obrigando o leitor a questionar as convenções de certo e errado que foram impostas pela sociedade. Ele denuncia uma cidade que parece mergulhada em um processo de desintegração ética e, ao mesmo tempo, se fortalece nesse caos. A poesia de Piva é, portanto, uma tentativa de expor as fissuras de um sistema que privilegia o poder e a aparência sobre a autenticidade e a liberdade.


A Estética de Paranoia: Entre a Palavra e a Imagem
Um aspecto fundamental de Paranoia é a sua composição visual. Ao unir os poemas de Piva com as fotografias de Wesley Duke Lee, a obra transcende a leitura convencional, criando uma experiência imersiva e multifacetada. As fotografias não estão ali apenas para ilustrar os poemas, mas para dialogar com eles, reforçando a sensação de alucinação e paranoia que permeia o texto. Lee captura o espírito de uma cidade em constante tensão, trazendo à tona uma São Paulo onde o concreto, o humano e o fantasmagórico se misturam em um cenário surreal.


A simbiose entre palavra e imagem confere à obra uma dimensão sensorial e cinematográfica, que transporta o leitor para uma São Paulo ao mesmo tempo familiar e desconhecida. É como se, ao virar cada página, o leitor fosse confrontado com cenas e sensações que desafiam a racionalidade e provocam a imaginação. As imagens de Lee agem como portais para uma cidade alternativa, que só pode ser compreendida plenamente através da poesia de Piva e das lentes de um fotógrafo que compreende o caos como uma forma de beleza e verdade.
Paranoia Hoje: Relevância e Legado.


Apesar de ter sido publicado em 1963, Paranoia permanece uma obra de grande relevância. Em tempos em que a sociedade continua a se debater com questões de liberdade, identidade e resistência às normas, a poesia de Roberto Piva ressoa como um grito de revolta e de busca por autenticidade. Suas críticas à moralidade burguesa, seu questionamento das normas e sua celebração do desejo e da espiritualidade fora dos moldes tradicionais fazem com que a obra continue atual e provocativa.


A resistência de Piva à categorização dentro da literatura marginal é emblemática. Ele se recusava a ser definido por rótulos, preferindo que sua poesia fosse um espaço de liberdade onde pudesse explorar a vida em toda a sua complexidade e intensidade. Paranoia é uma manifestação poética desse desejo de transgressão e de expansão da experiência humana, um manifesto que recusa os limites impostos pela sociedade.


Considerações Finais: Paranoia como Obra de Impacto na Poesia Brasileira
Paranoia é muito mais do que um livro de poesia. Ele é um marco cultural, um testemunho da efervescência criativa dos anos 1960 e uma crítica ácida à sociedade de consumo, ao moralismo e ao conformismo. Através de seus versos e imagens, Piva nos convida a questionar o que tomamos como certo, a explorar nossas próprias “paranoias” e a aceitar o caos como parte da existência.
Disponível atualmente em formato digital, graças ao Instituto Moreira Salles, Paranoia é uma leitura essencial para quem deseja explorar uma poesia que foge dos padrões e desafia a ordem estabelecida. Roberto Piva nos lembra que a poesia pode – e deve – ser uma força subversiva, um campo aberto para o questionamento e a liberdade de expressão.


Em Paranoia, o leitor não encontrará respostas fáceis ou consoladoras. Pelo contrário, a obra é um convite ao desconforto e à reflexão, um convite a ver o mundo com outros olhos. É essa a força e a relevância da poesia de Piva, que permanece viva e instigante, desafiando o leitor a romper com a rotina e a abraçar o desconhecido, como ele fez em cada um dos versos desse clássico da literatura brasileira.

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