Contemporâneo

Urbanossom

Contemporâneo

eu-sincronia
nas ruas-ruídos-ritmo,
passo-pulso em sincopa,
perco-me-percorro-me
no alfabeto concreto
de becos e esquinas—
sinais sem sinal,
tatuagens de neon,
eco-amor em grafite,
(cidade respira e expira)
você está aqui, mas quem é você?
viro esquina e esquivo,
esqueço-me no vidro,
reflexo-multiplico
perene-efêmero,
eu em mosaico
(dentro de mim há
um labirinto de rostos
que não sabem se estão)
somos ponte e viaduto,
ferro e febre, suor e cansaço—
metrópole de nós:
corpos em combustão lenta,
caos que dança e desfaz
você toca, e disfarça,
tatuado no ritmo
de quem não para
mas sente o peso da pressa,
pressa que apressa,
que puxa, engole
engrenagens humanas,
nós—

de aço, de carne
pulsantes
(dentro, sempre dentro)
no agora que se dobra,
na poeira que flutua
—somos o que sobra,
estamos onde somos:
espectros urbanos,
gente em geometria.

Análise do Poema “Urbanossom”
No poema “Urbanossom”, o eu lírico nos convida a uma jornada introspectiva e sensorial pela cidade, onde o urbano ganha vida própria e se torna uma extensão de quem o habita. Em uma fusão de ritmo e ruído, o eu lírico mergulha nas artérias de uma metrópole pulsante, onde o concreto, o aço e a pressa não apenas cercam o indivíduo, mas o definem e o moldam em sua multiplicidade. Aqui, a cidade não é apenas cenário: é um organismo vivo, respirando e se reinventando, um “alfabeto concreto” que sussurra histórias nas curvas e becos, nos viadutos e pontes, enquanto o indivíduo, fragmentado e disperso, se reflete em suas muitas superfícies.


A Sincronia com a Cidade: Um Encontro com o Urbano
O poema inicia com uma palavra que encapsula o tema: “eu-sincronia”. Em uma cidade moderna, o indivíduo busca uma sincronia consigo mesmo e com o espaço ao redor. A combinação de “ruas-ruídos-ritmo” é ao mesmo tempo um cenário e um estado de espírito: ruas movimentadas, o ruído das multidões, o ritmo frenético de uma vida sem pausas. A cidade é uma entidade rítmica, um espaço onde cada passo é parte de um compasso maior, um “passo-pulso em síncope” que reverbera em cada esquina, em cada batida do coração urbano. Ao mesmo tempo, a “síncope” sugere uma quebra, uma oscilação constante que representa a dificuldade de se manter em harmonia em um ambiente que sempre nos desafia e desorienta.
Aqui, o indivíduo não apenas se perde na cidade – ele se descobre ao perder-se, ao percorrer ruas que são também caminhos internos. O eu lírico afirma “perco-me-percorro-me”, sugerindo que o processo de se mover pela cidade é um movimento de autodescoberta, onde cada esquina revela mais sobre quem ele é, ao mesmo tempo em que o desafia a redefinir-se. A cidade torna-se um espelho, um espaço de exploração da própria identidade.


A Cidade Como Texto e Corpo
A cidade é descrita como um “alfabeto concreto”, um código visual feito de becos e esquinas que o eu lírico tenta decifrar. Mas são “sinais sem sinal”, uma multiplicidade de mensagens que nem sempre oferecem respostas, mas que deixam rastros e sugerem possibilidades. Os “sinais” não são direcionais, mas emocionais, como as “tatuagens de neon” e o “eco-amor em grafite” – expressões de vidas que deixaram suas marcas no concreto, em um ambiente marcado pela impermanência. A cidade, então, se revela como um grande corpo coletivo, tatuado e grafitado com as histórias dos que a habitam. Ela é a memória dos encontros e das despedidas, das paixões e dos confrontos.


A expressão “cidade respira e expira” atribui ao ambiente uma vitalidade própria, como se as estruturas de concreto fossem pulmões que inspiram e expelem histórias e vidas. Este ato de respirar sugere tanto renovação quanto desgaste; o ato de expirar é também um gesto de liberação. A cidade, como organismo vivo, exala o que absorveu dos que por ela passaram, liberando memórias e fragmentos de emoções que perpassam seu espaço.

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Reflexo e Fragmentação: A Busca pela Identidade
O poema atinge um tom mais introspectivo com a frase “você está aqui, mas quem é você?”, uma questão que ecoa as dificuldades de se definir em um ambiente onde cada esquina parece oferecer uma nova versão de si. O eu lírico vira a esquina e se esquiva, como se tentasse fugir de um reflexo incômodo, mas o “vidro” e as superfícies da cidade estão sempre ali para refletir sua própria imagem fragmentada. Essa metáfora de se “esquecer no vidro” sugere uma perda de identidade, como se o reflexo no vidro fosse apenas uma versão temporária e efêmera do que ele é. No ambiente urbano, o indivíduo é um mosaico, um conjunto de imagens que se sobrepõem e se contradizem.


O eu lírico se descreve como um “mosaico” e nos introduz a um “labirinto de rostos / que não sabem se estão”. Cada reflexo, cada rosto é uma faceta da cidade e de quem ele se torna ao navegar por suas ruas. Esses rostos, como fragmentos de uma identidade dispersa, representam as várias versões de si que o indivíduo assume no contexto urbano. A cidade o transforma em uma entidade plural, um ser em constante mutação, que ora se perde, ora se encontra, sem jamais se definir por completo.

O Corpo Urbano: Ponte, Viaduto, Aço e Carne
No verso “somos ponte e viaduto, / ferro e febre, suor e cansaço”, o eu lírico identifica-se com os elementos físicos e emocionais da cidade. Ele é parte integrante da infraestrutura, não apenas como observador, mas como um pedaço do corpo urbano, uma engrenagem viva no mecanismo da metrópole. Os elementos “ponte” e “viaduto” simbolizam a conexão, mas também a rigidez e o peso do ambiente urbano, enquanto “ferro e febre” sugerem a fusão entre a fisicalidade e o sentimento, o cansaço que o urbano imprime sobre o corpo.
Este verso é, ao mesmo tempo, uma celebração e uma denúncia. A cidade é um organismo vivo, mas é também um organismo cansado, uma entidade que exige de seus habitantes uma energia constante, uma combustão lenta de corpos que, ao longo do tempo, vão se deteriorando. O termo “corpos em combustão lenta” é especialmente poderoso, evocando a imagem de seres que ardem e se desgastam em um processo inevitável de consumo, sacrificados ao ritmo implacável da vida urbana.

A Pressa e a Desumanização: A Engrenagem Humana
A cidade exige pressa, e a pressa é descrita como um elemento que “apressa, que puxa, engole” os habitantes. No ritmo acelerado, o tempo parece um peso que nos empurra para frente, sem nos permitir pausa ou descanso. A cidade se torna uma “engrenagem humana”, onde as pessoas, com suas aspirações e sonhos, se tornam parte de uma maquinaria que não se importa com os sentimentos individuais. A imagem da “engrenagem” evoca uma realidade de alienação, onde o ser humano é apenas uma peça em um sistema maior, desprovido de identidade própria, pulsando e funcionando apenas como uma extensão da estrutura que o envolve.
A “engrenagem humana” representa o paradoxo de ser parte de uma coletividade e, ao mesmo tempo, sentir-se solitário e isolado. A cidade transforma seus habitantes em “nós – de aço, de carne, pulsantes”, onde cada um é uma entidade isolada, mas também parte de um todo inseparável. Esses “nós” são ligações, mas também são amarras, uma conexão que prende tanto quanto une. No contexto urbano, a individualidade e a coletividade se misturam, em uma experiência simultaneamente libertadora e aprisionante.

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O Agora e o Efêmero: A Temporalidade Urbana
Ao longo do poema, há uma ênfase no “agora que se dobra”, uma expressão que sugere uma temporalidade peculiar, onde o presente é denso, mas passageiro. O “agora” é um instante que se prolonga, mas que, ao mesmo tempo, desaparece rapidamente. Na cidade, o tempo é tanto uma constante quanto uma ilusão; os momentos se multiplicam, mas são igualmente efêmeros, como a “poeira que flutua”. A vida urbana é marcada por essa temporalidade fugaz, onde cada segundo parece conter o peso de uma eternidade e, ainda assim, passa rapidamente, sem deixar rastros.


Essa efemeridade se reflete na própria identidade dos habitantes, descritos como “espectros urbanos”. Eles são presenças fantasmagóricas, que transitam pela cidade sem deixar marcas duradouras, como sombras em movimento. A metrópole não permite permanência; ela transforma seus habitantes em aparições, figuras em constante trânsito que desaparecem sem serem lembradas.


Gente em Geometria: A Desumanização e o Desafio da Identidade
O poema conclui com a expressão “gente em geometria”, uma imagem poderosa que captura a essência do ser urbano. As pessoas, reduzidas a formas e linhas, tornam-se abstrações, parte de um sistema geométrico e ordenado, mas desprovido de calor humano. Esse conceito de “geometria” sugere uma desumanização, uma transformação dos corpos em formas que se encaixam perfeitamente no contexto urbano, mas que perdem a complexidade emocional e individual.


Ao mesmo tempo, essa geometria é um reflexo da ordem caótica da cidade, onde tudo e todos têm um lugar, mas onde ninguém realmente se encontra. A cidade é uma teia de relações e conexões, mas que deixa seus habitantes em um constante estado de busca. O “gente em geometria” representa o desafio de ser humano em um espaço que valoriza a funcionalidade sobre a individualidade, a eficiência sobre a emoção.

Reflexões Finais: O Urbano como Extensão do Eu
“Urbanossom” é um poema que explora a condição humana no contexto da cidade moderna, onde o indivíduo se dilui no espaço ao seu redor. A cidade é tanto um espelho quanto um labirinto, um espaço de perda e de descoberta, onde cada esquina revela novas facetas de si mesmo. A experiência urbana é marcada pela fragmentação, pela luta constante para se definir em um espaço que desumaniza e dispersa.
O poema nos convida a refletir sobre o impacto da cidade sobre a identidade individual, sobre o que significa ser humano em um ambiente que exige pressa e produtividade, mas que muitas vezes priva seus habitantes de conexão verdadeira e duradoura. Em “Urbanossom”, o eu lírico encontra uma maneira de se reconectar com o próprio ser, ao reconhecer-se na cidade, ao aceitar a complexidade e a multiplicidade de sua identidade urbana.
“Urbanossom” é, portanto, um poema de identidade, de busca, e de um amor silencioso pela cidade que, embora opressora e exigente, ainda oferece espaços de autoconhecimento e descoberta. É um lembrete de que, no final, somos todos parte da metrópole, uma sinfonia de ruídos e ritmos que reverbera dentro de cada um de nós, como o som de uma cidade que respira, que expira, e que nunca para.

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